Friday, November 13, 2020

ASSOLAÇÃO DE UMA PAISAGEM

 



O embrião da papoila ágil e buliçosa

dá lugar à desolação erma e sarçal

DESILUSÃO DE UMA PAISAGEM

 


na vigília das pálpebras

irremediavelmente a germinar

a mais impura tormenta


(entre parêntesis)

escrevo a noite

Monday, November 9, 2020

A COR DAS FORMAS VAZIAS


 

 

sem contrição num olhar profundo 


o dia cauto mostra-me os sinais

do silêncio que há num grito 


sinto o tacto suave em redor

da irregular escrita no vento 


a chuva lava-me os sentidos

os ultrajes dissipam-se despedaçados


resiste o vestígio de nenhum gesto

cravado firme em toda a memória


à distância

Monday, November 2, 2020

FIM

 



O epílogo de um sonho

Um sonho irreal

Duma realidade apócrifa


O real sonhado na ficção

Saturday, October 31, 2020

(DUPLA) PERSONALIDADE

 





O pseudo sentido de responsabilidade

Escuda-se na ambiguidade

Erradica a disponibilidade

Aperta o cinto de castidade


Friday, October 30, 2020

RESPIRO

 


O simulacro inacabado no equilíbrio de um vislumbre

A tenacidade absoluta em suspenso está no mar inteiro


Monday, October 26, 2020

UM EGO DESMESURADAMENTE DESPROPORCIONAL AO CORPO QUE O ABRIGA. UMA LUZ FINA.

 


Um gigante ilimitado

de debilidade titânica


A dilação consuma-se imóvel

A dessintonia revela-se infesta


Viro costas à sombra impossível

e de súbito volto a ser eu

Friday, October 23, 2020

ANFIBOLOGIA

 



Assunção dúbia sem coesão molecular. De avultada lentidão.

A ambiguidade perdura e instala-se imprimidora. Liquefaz-se no vazio. Recreia-se na vacuidade.

Uma fuga, um falso sinal. O rasto bianual ímprobo e tortuoso.

Nem um ruído nos escombros... A imunidade disforme ábdita do exemplar.

Fatuidade deambulante osca. Já não amparo os limites desse rosto intangível.

Thursday, October 22, 2020

A A A

 



A aquiescência da homocatalexia frui em resilição privada

A predicação melismática percute e volatiliza-se para lá do espelho

A beatitude imperativa condensa-se em senescência onírica

Wednesday, October 14, 2020

A MESMA LUZ

 



um silêncio estridente vindo do infinito

uma voz incauta soa no reduto desvalido

a lei da erosão desvenda um carácter novo

a reinvenção do fogo a quatro mãos

Monday, October 12, 2020

DÉCLORATION DE L’INTENSITÉ

 



l’oiseau frappé par la foudre

couché sur la poussière 


de la honte 

à la répulsion


et 

son  

chant 

oublie 

toute  

la  

mémoire 

du  

monde

Wednesday, October 7, 2020

HAIKU X

 




Desmaia o ânimo das ondas

As marés morrem devagar

O mar já não é salgado

Tuesday, October 6, 2020

20200910 (TRANSALPINO)



Fim de tarde com memória. Uma quinta-feira como qualquer outra. A voz teleguiada vinga-se na felicidade factível. Instila interstícios. Turbulentas fluem as palavras. Quebradas e derradeiras. Vindas de longe. Do nada. Do que não se cumpriu. Pelo atalho mais fácil. Com sombra vegetal. A máscara da banalidade.

A minha fuga ansiosa aos laços vedados. O mundo pára retráctil. Indecifrável e diáfano. O limbo da pele olvido em letargia austera. Sem coordenadas. O amor com limites. O sol eximido. Nada mais é. 

Venero o espanto e cumpro. O vento varre dentro dos livros. Frágil e transparente. O meu rosto sem peso. 

Cerro os olhos malferido pelo olhar furtivo. E olhas com falsa piedade as cinzas que não consigo estender. 

Nada restou do fogo primordial.


Sunday, October 4, 2020

SEM NORTE

 




Cinco graus abaixo de zero. Uma pedra na mão. A mesma mão que escreve o que a alma dita. Longo longo é o caminho. Continuamente sombrio. Deito-me na terra imensa. Soturna. A dor toca fundo e crava-se no chão. O leito do meu infortúnio. Uma terra estranha onde se quer envelhecer. 

Avisto o último fragmento onde só a noite sobrevive. O bilhete de regresso da viagem excelsa. Timidamente aconchego-me na areia desse deserto desmedido. Um deserto que não há.  Que começa e acaba em mim. Uma casa nova. Minha. Desassombrada de rosas e doçura. Aberta ao vento. Um lugar esquivo. Onde o sonho foge da realidade. E se esvanece num átimo. De jeito impalpável.

A vertigem da intimidade. O êxodo da confiança. A evasão da cumplicidade. A vida justifica-se ao avesso das palavras. Mostra-se sem fantasia. A desilusão do rancor e da distância. A decadência trajada de ruína. O mundo submisso na penumbra do vazio. Comovo-me. Deixo muito de mim pelo caminho. Um assobio dilacerante ressoa na memória. Uma dor que arde e que vejo. Algo obscuro onde o silêncio não versa o silêncio.

Diz-me coisa nenhuma. Como destino traído pela morte.

Saturday, October 3, 2020

UMA ESQUINA QUALQUER

 



abertura

um beijo. insondável noite iluminada. traço a elipse à mão. a composição de um porto de abrigo. o pirata apanhado em delito de paixão. uma louca ilusão. ergo o olhar com fulgor natural. o tempo suspenso. a fragilidade no aceno das bétulas. e das camélias. sentimentos absolutos com penas coloridas. no vórtice do tempo. em lagos de luz. as folhas juncam no retiro secreto. de idade transparente. de vários sabores. 

tema e desenvolvimento

sei de cor o mar. primitivo. somente som à superfície. periódico. ao amplo passo do dia. e da noite. pouco a pouco mais dormente. aproximo-me serenamente da vastidão. mais um beijo. no limiar da fina película. um parto difícil. com duração variável. natura filantropa? ou esfinge petrificada? os gestos abstractos solitários. o ranger da porta resiliente. na preconização do nevoeiro.

coda

não sei se sinto. o meu coração impotente. esvai-se na sensibilidade. nas palavras. palavras gravadas de eufemismo. o relevo inacabado do hieróglifo. uma escrita ilegível. o eco das árvores nas palavras. outro beijo. duas flores despidas. em espiral. opção cromática no seio materno. não me recordo de ti. anseio subir ao rubro olhar. da primeira noite. de preferência no campo. ou numa esquina qualquer.


Thursday, October 1, 2020

RELATIVIDADE

 



rocha fria

na sombra da dúvida

num fundo sem fundo

fecho o corpo

sem cálido sinal

na margem da brandura

em natureza variável


sentir é primeiro

nos atalhos da noite

ao zelo do tempo

vivo simplesmente

por ordem alfabética


deito-me cingido

na minha própria sombra

e as folhas imitam o vento


o sofrimento aos olhos do outro não fere


Wednesday, September 30, 2020

DA LUZ E DA SOMBRA. UM ELOQUENTE SILÊNCIO.

 



Tenho aprendido muito com o tempo cada vez mais escasso

Não recordo folhas secas nessa tarde de assomo vago

O que vivi de braços nus entre as pedras do teu jardim

Ondula em gestos nítidos e confunde-me os caminhos



Nos caudais onde o ar escasseia, o frio do medo tem pressa 

Ressoam gritos de esperança imaginados em musgo verde

O eco na montanha acende o ledo tom da aragem

Uma rubrica sem portas no sentido de todas as noites



Infindável ironia o rasto no caminho de regresso

Com exactidão entrego o corpo escrito ao vento

Tristes dos que perdem o paladar da vida e a alegoria do sonho

Acendo a luz e leio o corpo adjacente ao acto das nuvens



E o relevo do destino sobrevive ao caminho das pedras  

As áridas certezas habitam nas altas cumeadas

O sentido da vida na troca de marés insubmissas

Perpétuas

Onde não há sombra sem Luz

Saturday, September 26, 2020

O ROSTO E A MÁSCARA


 





Tudo parece irreal no mundo inacabado.

Só a enorme tristeza é real. Melancólica. Uma angústia consternada. Autêntica. Insinua-se nua. Não desabita.

Entre dedos um colossal desespero. Secreto e lancinante.

Percorro veredas hostis suspensas de traição. Indistinguível. Ardendo ao frio. Fora do mapa. Não me procures que não me encontras.

Respiro no epicentro do turbilhão. Corto amarras e vagueio sem rumo. Desgovernado. Sucumbo às vagas azedas. Na violenta visão nocturna. Onde não passa ninguém. Nem sequer as crianças orfãs.


O pesadelo revela-se no teatro dos sonhos. Em campo. Sem contracampo. Telecomunicado em água fria. Gelada.

                                

Qual apartação tecnológica!


Assolado por mãos outrora aveludadas. Da mais pura seda. Fina. Separas as ruas e as luzes esmorecem desguarnecidas. 

Extinguem-se. Caprichosas. Declinam ao frívolo sabor do teu eu.  

Um olhar turvo. Inabalável. Pessoal e intransmissível. Em passo sereno e incauto. Patológico. Onde a sensatez e o afecto não se falam.

Um epílogo de rosto longínquo. Sombrio. A anatomia de um logro. A elisão do ectoplasma. O desejo morto à nascença.


Sou árvore. Como tal considero as outras árvores.


Impugnado sou forçado a rasgar-te a máscara:

um ser dentro de outro ser.

Não te conheço.






INFINITO

 



Duas coisas são infinitas

O universo e a desilusão

Em relação à desilusão já tenho a certeza

Absoluta

Friday, September 25, 2020

FIM DE ESTAÇÃO


 

Perco algo de mim pelo caminho


Sombras imóveis cercam-me aterradoras


Ninguém poderá calar a voz do infortúnio


A luz apaga-se sem explicação


Renuncio aos princípios da didática lição


Uma palestra inútil reiterada continuamente


(uma voz que aprendi mas eu não estava lá)


Quem disse que a vida é poesia?


Afinal no fim era o verbo



Não há palavras que alcancem o prelúdio tímido dessa vastidão

Thursday, September 24, 2020

CREIO NAS PALAVRAS

 


Creio nas palavras

palavras que acolhi, que adoptei 

e acariciei

Creio nas palavras que venerei

e que agora troçam de mim

Wednesday, September 23, 2020

IMAGINÁRIO

 



Lábios sem nome ao ritmo de uma viagem intangível 

Prodigiosa a vida resiste aos dias lentos tímidos e alheios

Entre as árvores irrompe a doçura refém de um olhar longínquo

Vinda de algures uma voz fica na retina ardente do desejo


Saturday, September 19, 2020

BREU



um cheiro miasmático

um aroma morbífico

um odor familiar


o perfume da insídia?


posso não saber o que sinto

mas sei o que não sinto


Friday, September 18, 2020

EM CONCLUSÃO

 



O abismo bate à porta. Nos teus lábios. O íntimo sentido dissipa-se em declive. A folha caduca desliza na distância. Como nuvem abandonada à avidez dos ventos. Outrora os passos que demos eram poesia. E tudo se reduz à cúpula sombria. 

A melodia do destino. Dentro de cada noite. 

Thursday, September 17, 2020

FÁBULA

 



É chegado finalmente o tempo. As noites nuas são imensas. Sonhos deambulam no fundo. Invento o que apreendi. A verdade em carne viva. Aconchego-me à presença humana. Sob a cúpula estelar. Possuo as estrelas. Reinvento o fogo. Pressentimento denso e ardente. Real é o campo de flores. Deslumbrado ao colo da mãe. Ardendo em impetuoso idioma. Balança a frágil hostilidade. Ruína que estremece e não reage. Não deixes que te conheça. O calor lépido da vida. O ânimo íngreme de um beijo. A água turva já não replica. Senda sufocada pela ausência. O peso nebuloso das fronteiras. Do riso exíguo que nos imita. A vida suspensa que me espera. Perco-me da realidade. Um espaço oco dentro de mim. Era uma vez uma fábula. A natureza do escorpião.


Saturday, September 12, 2020

AB IMO PECTORE

 



sofisticados precipícios

na distância da noite

como nos livros


enigma iterativo que oscila 

entre pedras e melodias

luas cheias de som


sem que os passos me levem

indiferente à luz intraduzível

pergunto-me como amo


ainda

perdido

de repente

Wednesday, September 9, 2020

RECOLHIMENTO




As folhas do tempo ilegível

um tempo que não recua

que nunca mais volta


Tempo a que chamo nostalgia

Tempo a que chamas ilusão


Um caminho inundado de luz...

de momentos irrepetíveis 

(como nos sonhos)


Duração esquiva

Período ignoto

Prazo inefável 


As nuvens ficam pelo caminho

assim fiéis ao destino

como branco o acto do amor


As ondas 

A pele 

A distância das noites


O tempo 

dos dias que fogem

da morte que vem depois



 

Saturday, September 5, 2020

ANÁTEMA

 



Ainda creio no vento

Esperei o sorriso nos teus olhos 

Neste silêncio perpétuo da solidão


Um gesto impalpável de dor

Na lentidão da indiferença sem nome

Fico suspenso na voz da minha infância


Ao regressar da longa viagem

Abraço o tempo que me resta

Ainda creio no vento


Friday, August 28, 2020

SOUS LES BOIS







passe comme un orage

implore les nuages

reflète la lumière

insolente beauté

Wednesday, August 26, 2020

CONDIÇÃO HUMANA

 




A prerrogativa assintomática reificada do imperativo categórico 


implica a contrafacção idiossincrática contingente da razão

Monday, August 17, 2020

PARÁFRASE ANTOLÓGICA (OU ESCATOLÓGICA)

 






Agrilhoado de novo 
Avento um novo ciclo
Só a luz. Ou o vento. Nada mais.

Duas veredas
Dois rumos
Duas direcções

Disparidade seca autóctone e genuína
Eudemonismo insinuado elusivo crucial

A fragilidade ao avesso da imperfeição
Na urgência líquida de um deslumbre

O cume da solidão como adeus redentor
Ou a premissa idiossincrática ao anoitecer

Vacilo no âmago lento de mais um verão
E já não troco o céu ou o mar por mais ninguém


(a vida assim me ensinou)

Saturday, August 1, 2020

DEVANEIO







Fantasia 


Passado inútil debruado a joio


Desvanecimento do raio 


Dissipa-se nos confins

Thursday, July 23, 2020

UNE OMBRE DU BONHEUR






le silence parfait
profond et solitaire
d'un langage mystérieux
par élans envolé

le chaud rayon endormi
d'une douce verdure
coule sur le ruisseau
enlacé au brouillard

parmi le vent étonné
serein, humble et tendre
une étrange chorégraphie
s’inclina sous ses pas

(pause)

au-delà des mers inconnues
je démarre mon vol de nouveau
là bas, sous le ciel anonyme
le rayon effleure sa couleur

Saturday, July 18, 2020

TRANSFORMAÇÃO (física ou moral). Dissecação de uma viagem breve. Efémera. Lacónica.




Abissal a dissonância
entre a flor que plantei
que vi nascer, crescer
que colhi

E a que cogito perecer


A dualidade taxonómica intrínseca
à botânica
fitológica

Também as rosas mudam de cor
de aroma
de forma
de ser

afilam os espinhos
esquecem o esplendor
viram-se a poente

Um mimetismo bucólico receoso ao fogo
Uma metamorfose desprezável ao imo da Poiesis  

Saio de cena
deixo as raízes
espero a chuva

Tudo ao sabor do meu tempo

Imagino rosas 
Imagino rosas que não esmoreçam ou sequem
Imagino rosas que não definhem
Imagino Rosas

REALIDADE AUMENTADA





Cabe à insofismável erudição do porvir
desvanecer a quimera dos dias esperados

Friday, July 17, 2020

OUVINDO O ALÉM




Ouvindo o além
em presença do silêncio primordial

As palavras vagas morrem de sede
num sonho fluido em movimento 

Não subestimo o vento
mas considero a tempestade


SONHOS QUE CONSENTEM



Maior que o olhar
no meio do tempo fértil

Sublime, o húmus da terra
enche campos de lume brando

Levanto âncora em águas puras
- o sangue ímpio da madrugada

A imagem do rochedo
a vida breve

Nudez 
batida pela brisa 
sem disfarce

Uma fonte 
em direcção 
ao céu

Cai a noite
em êxtase

E os teus passos tocam-me o rosto

Tuesday, July 7, 2020

HAIKU IX




musa clandestina
glosa indiferente 
o gosto cálido da urze


Sunday, July 5, 2020

SONATA






I. Adagio sostenuto

Túmida lisura na areia branca 
e inclinada evoca vítreo 
o hálito da duna puro e fresco

O acto do corpo voa sem cortina 
ao som de um realejo

O leme suspenso adornado 
no cume do meu saber

Dissipam-se arquipélagos de chão árido 
que piso com ênfase viva



II. Allegro molto e con brio

Uma hora de voz desvanecida 
na penumbra lúdica e cega 

Um rubro vestígio jaz nas longas manhãs 
do mundo indemne a girar 

Pousa o vento nas mãos 
de um esquecimento ainda adulto

O segredo das aves no fulgor da noite pálida 
de palavras úberes entardecidas



III. Largo appassionato

Fecho os olhos e já as folhas me contam: 
- em cada sonho há uma fonte

Austero assombro desenhado 
nas pálpebras oclusas em ardor    

Quantos caminhos de estrelas no campo de trigo longínquo?
Quantas espigas douradas pelo sol a um certo entardecer?

Saturday, July 4, 2020

NOCTURNO




Amanheço com a suavidade de um cálido esboço sem leito.
A minha imagem silenciosa à procura de mim. Dissipada no âmago. Sem óbice.
O teu corpo longínquo. Da língua materna. Exaurido de euforia artificial. Tudo menos o gesto lúbrico a tiracolo.


Centelhas ao abandono. Abertas. Indiferentes ao tacto. E ao mármore.
O poente no parapeito das noites que existem. Imaginadas. À altura dos olhos.
Onde naufragam os rios e os mares. Vergados a uma condição suposta e meramente humana.


O abrigo do sorriso ardente. De fogo. Ao luar. Imanente. 
O ponto anacrónico. As ruas do avesso. Um zelo quase vagaroso. 



Passo abúlico pelos dogmas defessos.
Lídima é a voz do poeta.

Friday, July 3, 2020

REPRESENTAÇÃO




Irreversível traço onírico em gesto de tom escuro
O dilema dos dias com reticências nas colinas de espuma
Adulo o viço das manhãs que precedem a névoa do Outono

Antigos esconderijos vertem permissivos o afecto profundo
A expressão da simplicidade no silêncio do pensamento
Uma imagem idealizada no espaço volúvel de matiz inaudível

Monday, June 29, 2020

TODAS AS NOITES






Noite. 

A caminho de casa. Casa em que entro. E volto a ser criança. 
Onde a inocência espreita. E sou criança outra vez. 
Onde devaneio. Onde fantasio. E me protejo. 
Das intempéries e das tormentas. 
Do fogo. Da paixão.
Do bem e do mal.

O cabelo, a boca, os olhos acompanham-me. 
Os bolsos também. 
Trago o corpo. Sem peso. 
Sem nada querer em troca. 
Porque haveria de querer? 
O pensamento é só. 
Livre e disponível. Espontâneo.
Ilimitado como o céu.

Chego. Sento-me. No umbral. 
Acaricio as flores. Saboreio o pólen.
Respiro o ar envolvente. Periférico. 
Criado por um deus qualquer. 
Noite após noite. 
Todas as noites.

No firmamento uma estrela solitária
Diferente. Sem igual.
Em todo o meu céu. 

A minha estrela. Singular.
De todas as noites. Única. 
Desde o princípio. Desde a minha existência.
Tão longe e tão perto. 
Sensível.
Demasiadamente humana. 
Enigmática.

Trocamos impressões. 
Olhares. Sensações. 
Afectos. Pensamentos. 
Abraços. Todas as noites. 
Para além do bem e do mal. 
Prazeres. Mágoas. 
Lágrimas. Recordações.
Todas as noites. Inocentes. 
Em silêncio.

A inocência está para além das nuvens.
As nuvens são uma janela para o amor.
A minha estrela sente. Se não sentisse não me esperava. 
Todas as noites.

Se não estivesse lá, não era inocente.
E eu talvez não sentisse... 

Amar é sentir as estrelas. A inocência no sentir.
A minha estrela ama. Se não amasse não sentia.
E se não sentisse, não existia o amor.
Não há amor sem inocência.

A minha estrela está à minha espera todas as noites.
Desde o princípio dos tempos. No advento nocturno.

Se eu for para casa à noite, eu sei que ela está lá.
Eu sei que ela está lá mesmo que eu não vá para casa à noite.